A curadora e professora Dra.
Lisette Lagnado organiza semestralmente na
Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, um seminário sobre curadoria, no qual já passaram
Paulo Herkenhoff e
Adriano Pedrosa. Na sua terceira edição o convidado foi o artista-etc
Ricardo Basbaum, dando ênfase em exposições organizadas por artistas que assumem um papel comumente reservado ao crítico.
Uma das características mais interessantes dos seminários organizados pela Lisette Lagnado é o formato de como esses encontros são realizados. Esse é inclusive um dos motivos pelo qual nos interessava a participação dela na
Temporada de Projetos na Temporada de Projetos (infelizmente ela não poderá participar por conta de um compromisso no fim do segundo semestre).
O seminário está estruturado em duas partes. Na primeira, Lagnado entrevista o convidado. Essa entrevista é resultado de 2 ou 3 meses de conversas entre os dois, bem ensaiada, mas durante a apresentação permite naturalidade e espontaneidade. Após um intervalo, a segunda parte é aberta para perguntas elaboradas pelo público, sendo que as perguntas são enviadas à mesa na forma escrita (em pequenos papéis) após o final da primeira parte e antes do início da segunda (o que permite à Lisette organizar/agrupar as perguntas). Toda a conversa é transcrita e divulgada na edição seguinte da
revista Marcelina.
Ocorrendo 2 vezes ao ano, há bastante preparo para cada encontro, o que fortalece a sua efetivação.
O seminário com Basbaum iniciou às 17hs e terminou às 21hs, do dia 16 de junho. Lagnado começou afirmando que “todo curador deve ser um crítico”, deve ter “responsabilidade intelectual fora dos museus”, e não ser um “simples produtor “. E lançou a pergunta: “como pertencer ao circuito [como produtor de "objetos" artísticos] e criticar ao mesmo tempo?”.
Basbaum falou que o problema de produzir uma obra, no seu caso se inicia com a questão do discurso crítico, mais do que a questão da curadoria, como em reação à um vazio do circuito por meio do esforço de produzir comentários críticos que de outra maneira não existiriam. Isso, para Basbaum, instrumentaliza a posição do artista, no sentido de sentar numa mesa de negociações não apenas com a obra mas também em relação à outros elementos. Só depois isso se agrega à perspectiva curatorial, no sentido de organizar situações, eventos, publicações.
Basbaum explicou o termo do artista-etc: o artista como curador, como crítico, e como agenciador. Para ele, estar dentro e estar fora é assumir que não existe distanciamento crítico seguro, e que sempre há uma demarcação de posições, e que nada mais é próximo da atividade do artista do que demarcar essa posição enquanto um produtor ligado a uma certa poética, à um jogo crítico conceitual histórico, e carregá-las também seja para qualquer atividade que for feita: para um gesto curatorial, critico, etc, e a partir daí criar um campo de ação.
Basbaum, respondendo ainda a primeira provocação, falou que não existe mais somente o contato sensorial com a obra, no sentido de uma relação imediata, que a pureza da espontaneidade imediata não existe mais, e que há mediação o tempo todo. E afirmou que é na disputa entre mediação e imediação que reside a tensão entre a curadoria e a produção da obra, e mesmo o estar dentro e estar fora.
Lagnado citou o texto do
Boris Groys em que ele afirma que “o curador seria um artista secularizado”, ateu, e que ela se interessou por essa possibilidade de entender uma espécie de secularização de um lugar ou posição.
Ligada a primeira pergunta, Lagnado colocou o fato de Basbaum ser um não-pintor da
geração de 80, geralmente referenciada como a geração da pintura. Essa colocação voltou várias vezes ao longo do seminário, inclusive nas perguntas. Basbaum retrucou afirmando que a idéia de “geração é muito vaga” e que a geração de 80 é mais um fenômeno cultural do que artístico, e que ele se posicionou criticamente à essa idéia. Aqui, é interessante comentar que o problema de rotular uma geração, como o caso da geração 80, continua existindo hoje: a geração de 80 ainda é a geração da pintura e as gerações seguintes também vão recebendo rótulos. Isso se tornou mais claro quando, após o seminário, ocorreu a abertura do prêmio “
Energias da Arte” , no
Instituto Tomie Ohtake, que consistia numa exposição coletiva de trabalhos de jovens artistas, selecionados por meio de uma convocação pública. De quase 400 projetos, cerca de 21 foram selecionados para a exposição e 3 receberam um prêmio na noite da abertura. A grande parte das obras expostas respeitavam em grande medida os limites de uma tradicional mostra de Belas Artes, isto é, eram principalmente trabalhos bidimensionais, como fotografias, pinturas e colagens. Ou seja, uma produção contemporânea significativa, que não se dá nos moldes e limites da sala de exposição, fica fora da definição dessa geração, de nascidos após 1981, focalizada pelo programa do Tomie Ohtake.
Entre outros assuntos colocados no seminário estava a definição do que é “arte conceitual” e “conceitualismo”, a separação da arte conceitual histórica (que, segundo Basbaum, ainda é entendida muito em relação a um contexto anglo-saxão histórico muito específico) e práticas que existem hoje e recebem esses rótulos, e que o fato das duas últimas bienais foram chamadas de conceituais. Durante a pergunta, a Lagnado explicou: “Quando afirmo que o curador é antes de mais nada um sujeito dotado de responsabilidade intelectual, eu quero discutir é a cilada do sistema neo-liberal que transformou o valor simbólico do curador independente numa expressão semântica absolutamente vil. Ou seja, o que a gente pensava que era o curador independente antes é um serviço terceirizado”. E explicou a origem da expressão “independent curator”, cunhada por
Harald Szeemann, que inventou para si uma profissão e passou a adaptar as estruturas das instituições às exigências das práticas artísticas, investindo em “intensas intenções” no lugar de “masterpieces”. Ou seja, o curador independente não traria as grandes obras, mas sim estaria comprometido com suas “intensas intenções”. Porém, segundo Lagnado, o curador independente não é nada disso, e sim tem se tornado dependente da situação econômica da instituição a qual trabalha e isso também acarreta numa submissão moral.
Referenciando o debate “
The next documenta should be curated by an artist?” (2003) lançado por
Jens Hoffmann , Lagnado enfaticamente perguntou a Basbaum: você gostaria de curar a 29a Bienal de São Paulo?
Após um “não”, Basbaum afirmou que acha interessante a provocação que Hoffmann faz para que os artistas produzam textos, como no “The next Documenta…”. Porém, “projetos curatoriais”, afirmou, “eu realizei muito poucos”. E citou o caso do
Panorama (2001) e experiências na Eslovênia e em Portugal. “Tenho resistência a eventos muito grandes como a Bienal de São Paulo, onde há um formato pouco moldável. Me posiciono mais junto de pequenos projetos, muito específicos, que me intessariam praticar esse papel”. Por outro lado, Basbaum não excluiu a possibilidade de uma eventual colaboração, de uma curadoria que hipoteticamente pudesse ocorrer com uma equipe, mas, devido exatamente ao grau de especulação é muito difícil afirmar qualquer comprometimento hipotético.
Basbaum apresentou uma série de trabalhos chamada “Re-projetando”, que para ele é uma série que se aproxima mais da prática curatorial. Ele projeta o desenho/forma
NBP, criada por ele e que se repete nos seus trabalhos, em um mapa e descobre nove pontos em que ele passa a realizar ações/eventos diversas, artísticos ou não, por meio de uma prática coletiva e transparecendo as relações institucionais.
A forma NBP usada por Basbaum em "Re-projetando"
Em seguida, Basbaum apresentou um outro projeto em que foi co-curador chamado “
On difference #2“, em que aconteceu em
Stuttgart na Alemanha,
onde ele propôs trazer quatro situações que envolvessem os artistas desempenhando papéis como produção editorial, mobilização política, construção de eventos, e pesquisa. A presença dele como curador estava na organização dos projetos mas também na “inserção plástica” no espaço reservado e desenhado para a exposição, uma experiência que Basbaum denominou de ”escultura curatorial”.
Uma das últimas perguntas que Lagnado fez para Basbaum continuou o debate a respeito das redefinições das mostras, como a Bienal e o Panorama. Segundo Lagnado, as identidades das mostras tem mudado, “a não ser o
Rumos que continua sendo um programa de mapeamento que procura dar visibilidade a artistas que não tem visibilidade, mesmo que às vezes são reencontrados certos nomes que já estão inseridos”, pois eles tem a preocupação com o mapeamento. Lagnado colocou que a exposição sempre depende do curador que vai estar a frente do projeto. Ela é, assim, “uma caixa de ressonância do que o curador pretende colocar no espaço”. “Como esse espaço pode ser social, no sentido de instaurar lugar político e mudar não só o formato da exposição?”, questionou Lagnado.
Para responder a essa questão Basbaum usou a palavra “perigo”, sugerida por Lagnado, e “perigo curatorial”. Para ele, no circuito institucionalizado, a figura mais estável é a do curador, no senso comum, o perigo da exposição se atribui ao artista. Porém hoje ocorreria uma inversão, e a mídia só percebe agentes provocadores nos curadores, e “não vemos cuidado em trazer algo do encontro com as obras, e sim com o evento, uma entidade que tem uma dimensão pública mais clara”.
Para exemplificar um caso de substituição do curador funcionário pelo intelectual, Basbaum usou o caso do artista
David Medalla, que em 2000 fez a
London Biennale. A Bienal se consistiu em uma proposição para que qualquer artista do mundo pudesse participar da exposição, bastava enviar três fotografias dele (do artista) com uma flecha escrito “Bienal de Londres” e junto à estátua de
Eros em Londres. Ao longo da Bienal, vários encontros ocorreram na frente da estátua de Eros. “É um evento desburocatizado, que possibilita uma rede a partir de encontros, e vemos que isso acontece a partir da poética do artistas”, concluiu Basbaum.
A
Temporada de Projetos na Temporada de Projetos também tem sido chamada de “conceitual”, e comparada com a última Bienal, além de já ter sido ‘acusada’ de uma “exposição sem arte”. A possibilidade dos projetos de artistas poderem substituir as obras sempre é colocada como uma pergunta e não uma afirmação, ou seja, o fato é que a princípio realmente não sabemos se é uma “exposição sem arte”.
Vale a pena notar também que, diferente de Basbaum, na nossa proposta não se pretende que a prática como artista intervenha plasticamente na curadoria, ou seja, o fato da
Temporada de Projetos na Temporada de Projetos ser uma exposição com curadoria de artistas não implica que ela vai ter um aspecto artístico, no sentido de elaborar uma “escultura curatorial”, e sim implica na realização de uma exposição que toma a experiência artística como ponto de partida para a proposta.